Curar. Ação, prática comunitária, ancestral, processo, lugar do cuidado, da atenção, da escuta e do gesto. Curar uma exposição, num ano quasi distópico em que a nossa perceção da realidade e da normalidade foi alterada por uma pandemia global causada por um vírus é, simultaneamente, um exercício absurdo e irónico de inscrição e ressignificação do real.
Num ano de incerteza, em que a perspetiva de presente-futuro se afigurou como uma miragem num espaço-tempo suspenso, refletir sobre a atividade artística do Porto foi, para além de um desafio, uma provocação necessária que nos permitiu acompanhar a respiração –ora silenciosa, ora enérgica – de artistas, criadores/as e agentes, num momento de reinvenção e resistência.
Assumimos como premissa, num gesto atento a essa conjuntura, duas ideias que atravessam o pensamento e o programa curatorial: solidariedade e coletivo. Auscultar e reconhecer a cidade e o seu tecido artístico, num momento de acentuada dificuldade para o sector, evidenciou o caráter frágil e vulnerável das suas estruturas — paradoxalmente estoicas na resiliência e flexibilidade face às adversidades.
Sensíveis ao contexto, restabelecemos e remodelamos o foco do locus, para uma exposição que se apresenta em vários lugares, criando uma rede entre estruturas independentes e uma condição de fazer, que se alberga numa tipologia de espaços que não eram os seus – lojas que se transformam em espaços de trabalho e, ao mesmo tempo, em lugares de mostra de arte. A edição de 2020 do Anuário apresenta-se sem uma ordem aparente, num regime que convida à deambulação e à descoberta, criando relações improváveis que refletem as intersecções de experiências e de vozes distintas que habitam a cidade ou que se ampliam com a mistura e o confronto de outras, que surgem de múltiplos contextos e geografias.
Importa pensar a prática artística na cidade, partindo de um olhar abrangente e atento a todos os agentes que integram as diferentes comunidades, de forma a reunir e reconfigurar um conjunto representativo da diversidade local, traçando, assim, uma linha, entre muitas possíveis.